A mulher do Gregório
Quando, certa manhã, acordou de intranqüilos sonhos, Gregório Santos viu-se, no seu leito, deitado ao lado de uma imensa gorda. Era a sua mulher. Ficou chocado.
Não lembrava do instante em que se desencadeara aquela metamorfose. Não percebera que vinha ocorrendo. Recordava, isso sim, de como sua mulher era ao se conhecerem. Não que fosse magricela, não. Mas, pô!, estava tudo em cima, lá. Grande onde tinha de ser grande. Redondinha onde tinha de ser redondinha. Substanciosa, sim. Opulenta, talvez. Gorda, jamais.
Agora, tremia ante àquela... coisa... ocupando dois terços da cama — bolotas de sebo pendendo dos braços e dos culotes.
Um pára-choque de banha protegendo a cintura. Três queixos.
Sua mulher. Uma gorda.
Gregório refletiu. Vieram-lhe à mente os jantares que deu para articular sua candidatura à presidência do clube. Durante dois anos, convidou conselheiros para reuniões noturnas em sua casa. Todos compareciam, mesmo os de outras facções. Ninguém perderia as iguarias feitas por sua mulher.
Os bobós de camarão. As bacalhoadas à Gomes de Sá. As rabadas de ovelha com feijão mexido. Os hors-d'oeuvres. Os licores que ela mesma aprontava com suas mãozinhas de fada. As sobremesas, as sobremesas, aaah...
Gregório Santos elegeu-se presidente do clube graças aos manjares celestiais preparados por sua mulher. Só que ela também comia.
Não apenas durante o jantar, em silêncio, ouvindo as articulações tramadas por ele. Também antes, enquanto besuntava acepipes, recheava petiscos, engrossava cremes, flambava guloseimas. De tudo, provava um naco, uma colherada, uma rapa, e suspirava, e estalava a língua, e fechava os olhos, e provava mais um pouquinho, um tantinho só, um nadinha, e outro, e outro, e mais outro.
Assim, engordou lenta e inexoravelmente. Do que Gregório só se dera conta na tal manhã de dor. A partir daí, a vida dele mudou. Sentia-se traído. Casara com uma uvinha, e agora, ao chegar em casa, encontrava uma jaca. Pior: sentia vergonha dela. Depois da descoberta daquela manhã, nunca mais a levara ao bar onde sempre se reunia com os amigos e os dirigentes do clube.
Separaram-se. Gregório Santos passou a namorar a secretária — loira, vinte aninhos, saltitante, matinal. A mulher de Gregório ficou duas semanas trancada em casa, chorando. Passado esse período, que fazer?, ela procurou emprego, foi tratar da vida.
Semanas. Meses. Numa noite azul de sexta, Gregório levou ao bar os empresários de uma multinacional que propunha formar parceria com o clube. Jantavam, tranqüilos, quando ele percebeu que o mais jovem dos empresários esticava um olhar fervente de lascívia para a mesa ao lado.
Gregório virou a cabeça para ver quem era a tal, certamente uma das apetitosas do ambiente, e, Jesus!, era ela! Sua mulher! Sem que ele percebesse, sua mulher havia se transformado numa... numa gostosa! Estava lá, de minissaia, pernas cruzadas, os bicos dos seios quase rompendo a blusa fina, bronzeada como uma primeira-dama, sorrindo para o maldito empresário!
— O-oi — gaguejou Gregório.
Só então ela o encarou.
— És tu, Grégor! Nem tinha te visto... — Fazida! E que negócio era aquele de Grégor?
Os empresários, cutucando Gregório:
— Conhece? Conhece?
Conhecia, sim. Teve de chamá-la para a mesa. Ela sentou-se, cheia de frufrus com os empresários, grudou-lhes beijinhos nas faces. Entre um chope e outro, esbofeteando-o com uma felicidade ofensiva, falou de personal trainers, de dieta de proteínas, e mal dava atenção a Gregório, só olhava para os empresários, só ria para eles.
A alma de Gregório havia se embolado toda numa ponta do intestino grosso. Não contou para os empresários que eles assediavam sua ex-mulher. Ela também não. Ela sequer olhou para ele. Depois de uma hora de aflição, Gregório sentia-se uma barata. Levantou-se, tonto, e foi ao banheiro, lavar o rosto. Ao voltar, ela não estava mais lá. Nem o mais jovem dos empresários.
— Onde foram? — perguntou ao mais velho. Que respondeu com um riso malicioso:
— O safado foi matar aquela bolona!
Gregório tomou o maior pileque da sua vida. No dia seguinte, foi acordado pelo tefonema do desgranido que saíra com sua mulher:
— A parceria está feita! — exultou o empresário, antes de dizer alô. — Depois dessa noitada, a parceria está feita!
O clube saíra ganhando. Mas a cornice retroativa transformou Gregório num inseto. A todo momento, um de seus amigos ou colegas de diretoria comentava a forma física exemplar de sua mulher, como ela estava bonita, como tinha mudado. No dia em que lhe contaram que ela fora vista no shopping com o craque do time, o Renatinho, Gregório Santos disse o seguinte:
— Aaaaaaaaaaaaaaaaaah! — um grito tão dolorido e tão primal e tão alto que foi ouvido no estádio do clube rival.
Gregório saiu correndo a pé mesmo, chegou à casa dela, arf, arf, só pulmão e língua, abriu a porta num pontapé, agarrou-se aos tornozelos lisos dela e implorou:
— Me perdoa! Me perdoa!
Ela perdoou. Voltaram. E se passaram os meses. Anos. Gregório estava feliz com sua vida caseira, serena, igual. Sua mulher continuava cozinhando bem. O parceiro do clube era outra multinacional. O time conquistara o campeonato.
Renatinho havia sido vendido para o futebol bósnio. Tudo estava certo. Mas uma manhã, ele acordou de sonhos intranqüilos. Olhou nervoso para o lado, para a sua mulher. Então viu, sob o lençol, um volume imenso, redondo. Gritou, como um dia havia gritado:
— Aaaaaaaaaaaaaaaaaah!
Sua mulher acordou sobressaltada e jogou o travesseiro longe. O travesseiro que estava sobre o ventre dela. O travesseiro, ela sempre dormia agarrada ao travesseiro! Continuava linda. Não exatamente magricela, mas, bem, opulenta.
Gregório nem respondeu quando ela perguntou o que houvera. Apenas virou de lado. Suspirou. E sorriu.