Páginas

O olho de vidro

Categorias , | Postado em 07:50

O olho de vidro

O Fernando tinha um olho de vidro — perdeu o de verdade num acidente de carro. Vi o Fernando tirar aquele olho várias vezes, uma experiência deveras peculiar. Não vou descrever o que havia abaixo do vidro, porque quando o fiz o Potter passou mal. Só conto que, uma tarde, caminhávamos ali pelo antigo supermercado Febernatti e um carro, entrando no estacionamento, quase o atropelou. O motorista abriu a janela aos berros:

— Não enxerga, é?

O Fernando sacou o olho de vidro, aproximou a cara do motorista e mandou:

— Não, ó!

Por pouco o sujeito não desmaiou ali mesmo, atrás do volante.

Quando ia dormir, o Fernando deitava o olho em um pote com água, que nem uma dentadura. Aquele olho ficava ali, boiando, fitando o vazio com grande atenção. Certa noite, o Fernando conheceu uma formosa moça em uma festa, levou-a para casa e, depois da ingestão de algumas taças de champanhe, eles fizeram amor — o Fernando sempre foi um romântico, não fazia sexo, fazia amor. Findo o ato, os dois dormiram abraçados, de colherinha, uma graça. Transcorridas uma ou duas horas, o Fernando acordou, foi ao banheiro para fazer sua higiene íntima e pôs o olho de vidro no copo d´água. Voltou para cama com o copo, depositou-o no criado-mudo, achegou-se à dama nua e linda, que ressonava docemente, e adormeceu. Eis desta vez quem acordou foi a moça, a garganta seca, a boca pastosa, agoniada de sede. Divisou aquele copo convidativo e não teve dúvida: bebeu a água de uma única vez. Engoliu o olho do Fernando. Que, ao acordar e saber do ocorrido, apenas comentou:

— Essa mulher está me saindo os olhos da cara.

O Fernando era assim, aceitava qualquer vicissitude com bom humor.

Bom humor, tolerância, essas são talvez duas das maiores qualidades humanos. Que, infelizmente, andam ausentes no futebol. Quem dribla leva cartão amarelo, quem comemora gol é expulso de campo e o torcedor, a cada dia, se comporta com maior ignorância. Isso que o futebol é só um jogo! Imagina se essa gente perdesse um olho.

Conto de David Coimbra

Comments (0)